Falar sobre compromissos ocupacionais é o mesmo que dizer das
necessidades das pessoas. Os compromissos decorrem das necessidades do corpo
ocupacional cuja natureza é secundária, pois deriva da natureza primeira e
funcional precursora, no ser humano, da condição ocupacional. Esses
compromissos têm origem nas necessidades físicas, são modeladas pela
consciência e mediadas pelo contexto social respectivamente: o imediatamente
dado (o corpo em si) a potência que permite novos corpos no mesmo corpo e, por
fim, o poder de mediar as diversas camadas da natureza ocupacional.
O corpo ocupacional é unidade sintética da vida e a razão primeira e
última (motivo e consequência) dos compromissos ocupacionais. Ele se manifesta
como a síntese de duas de suas dimensões, a dimensão pré-ocupação e a
dimensão
ocupação, que são respectivamente: o empenho e o desempenho. Ambas
caminham num contínuo de tensão da projeção à plasmação, da vontade em atos.
Os compromissos ocupacionais podem ser p. ex.: possíveis, mas indesejáveis; desejáveis, mas não
realizáveis; necessários, mas impossíveis; proibidos, mas desejáveis etc. Eles
se nos apresentam em frequente tensão e como possibilidades, obrigações,
deveres, necessidades e desejos relacionados. Dessa forma, a vontade move-se e
é movida pela força das obrigações,
desejos, necessidades e possibilidades contidas nos compromissos ocupacionais.
O nível de satisfação ou insatisfação com o resultado concreto da ação
humana (o bem ou o mal materialmente falando) tem origem na síntese das duas
dimensões do corpo ocupacional. A busca pela satisfação é um fenômeno que
acompanha todo o curso da síntese, ou seja, do empenho ao desempenho. Assim, de
forma resumida, ocorre um empenho, uma penhora e a ela se segue a busca pela
satisfação. Trata-se da recuperação, por meio do desempenho, da coisa
empenhada, daí a razão do prefixo de negação “des” contido no termo desempenho; o desempenho é o resgate de um
investimento, é a recuperação na forma de satisfação do que foi empenhado.
Dependendo do grau de satisfação, o processo de síntese pode ser fonte
sofrimento ou prazer. O conjunto dos desempenhos (resgates) ocorridos na
história ocupacional e a expectativa (a coisa empenhada) determinarão o grau da
variação entre dor e prazer.
Para ilustrar a amplitude da variação acima referida tomemos como
exemplo duas situações extremas de dor:
Suponha-se algum compromisso ocupacional não confesso cujo projeto de ser foi sufocado por cipoais de medo ou
de vergonha e no qual sequer se alcançou o instante do desempenho. Neste caso,
frustrou-se a descarga da força
contida na coisa empenhada
(penhorada), isto é, o desempenho acabou frustrado e a força empenhada não saiu
da dimensão
pré-ocupação. Quais as consequências? Bem! Caso a força da coisa empenhada
encontre, num outro instante, alguma outra forma de dispersão, ela deixará a
preocupação ou alcançará uma redução na preocupação. Contudo! No caso da não
dispersão e, ainda, de refluxos sucessivos da coisa empenhada à preocupação, decorrerá uma forma de sofrimento;
um sofrimento pré-ocupacional. A coisa empenha restará aprisionada, lá onde
mora o imaginário do algo empenhado,
mas não realizado e os fantasmas do “porque”: Por que não fiz? Por que não
posso? Por que não quero? Por que não consigo? Por que devo? Por que não devo?
Por que não sou?
Qualquer coisa que frustre o desempenho, que não permita o resgate da
energia empenhada, que impeça de modo persistente que o desempenho exista como dimensão
de recuperação do corpo ocupacional projetado (pré-ocupado) será fonte de um
sofrimento pré-ocupacional. Nesse formato, é a impossibilidade perpétua de
realizar-se no seu próprio corpo ocupacional; o não conhecimento ou
reconhecimento em si da dimensão do desempenho; da busca de
satisfação; que em si encontra-se a
satisfação.
Por outro lado, quando o desempenho é desprovido de coisa empenhada,
não há, via de consequência, o que resgatar e, dessa forma, não há des-empenho.
Esta condição de fazer algo desprovido de propósito é a aparição do sofrimento
ocupacional no seu extremo. O desempenho sem a coisa empenhada é qualquer outra
coisa que não desempenho. Trata-se da desnaturação do corpo ocupacional.
Na primeira situação tem-se o empenho, mas frustra-se o desempenho, o
resgate da coisa empenhada. Ela fica
aprisionada no emaranhado da pré-ocupação, pois reflui sucessivamente para ela;
o recalque do corpo ocupacional. Na segunda o desempenho não é frustrado, ele
sequer existe, pois não há empenho; é a desnaturação do corpo ocupacional. A
atividade desprovida da coisa empenhada pode até ser funcional, mas, por certo,
não é ocupacional.
A profissão historicamente se deteve na redução extrema da dimensão
ocupação do corpo ocupacional e, dessa forma, em muitos contextos, se
reduziu a uma espécie de “terapia não verbal” onde os terapeutas estavam
obrigados a “obrigar” aqueles que estão sob seu cuidado a fazer alguma coisa.
Talvez a caricatura abaixo explique o efeito deletério que tem a indevida “obrigação de fazer o outro fazer” na amálgama
de nossa identidade; um véu de obscuridade.
Alguém diz: “Gente! Gente! Chegou
um Terapeuta Ocupacional! E o coro exclama: Opa!!! Agora esses pacientes vão fazer alguma coisa!”
Não gostamos disso! Mas o véu da “obrigação
de fazer o outro fazer” está tão impregnado na identidade da Terapia
Ocupacional que quando alguém, que não um terapeuta ocupacional, se vale de uma
atividade qualquer para “beneficiar”,
de alguma forma, uma pessoa, um intenso sentimento de injustiça emerge. Uma de
nossas mais importantes contradições! Não gostamos disto, mas é nosso!
Vivemos um momento em que outras orientações profissionais, não sabendo
como aparentar produtividade concreta, dão as costas aos seus paradigmas e
vestem-se dos paramentos da liturgia “da
obrigação de fazer o outro fazer”
Uma nova práxis clínica, um novo ciclo virtuoso demanda o que denomino,
de modo provisório, por incapacidade momentânea de formular um termo mais
exato, de uma abordagem dialógica
sintética da coisa empenhada e do seu des-empenho. Trata-se de uma abordagem eminentemente
verbal, produtiva e capaz de desvelar os compromissos ocupacionais das pessoas
e as dificuldades para colocá-los em curso.
O fato de estabelecer essa dialógica sintética tematizada em
compromissos ocupacionais há de refletir na nossa capacidade de cura (cuidar, adaptar, desenvolver). O
desempenho ocupacional, como se sabe, se define como aquilo que se dá na vida
real das pessoas e não no setting
terapêutico. As atividades materiais, nem sempre necessárias, que se realizam
na clínica da terapia ocupacional são técnicas de ensaio para a vida real, são
imitações da vida em ambiente controlado cujo objetivo é, sobretudo, contribuir
para uma maior certeza de que, quando no cotidiano, a pessoa saberá resgatar,
por meio do seu desempenho, o que ela empenhou.
Há que se manter uma distância cuidadosa da “primordial” e habitual
pergunta: “o que você quer fazer?” juntamente com as listas (cardápios)
de atividades que têm origem na “obrigação de
fazer o outro fazer”. Esses dispositivos dissimulam a obrigação de fazer (o
tratamento moral), ludibriam o corpo ocupacional com a suposição de que as
pessoas escolheram o que estão fazendo, driblam e alienam as reais vontades
(compromissos) e driblam os observadores menos analíticos.
No lugar do “novo tratamento
moral” = “o que você quer fazer?”, roga-se a inscrição (o registro) na
carne (no corpo) de uma nova Ética Ocupacional onde a abordagem dialógica possa
suscitar: “em quais compromissos ocupacionais você está empenhado? Pois aí está
penhorada uma parcela importante de sua vida? Em quais compromissos você não
coloca mais empenho? (fé, esperança, crença, valor)” [...]
“Como você espera desempenhar os seus compromissos ocupacionais?” [...] “Qual
sua dificuldade para passar do empenho ao desempenho?” E outras tantas!
Há uma parte invisível, contudo material naquilo que as pessoas
realizam. Quando perguntamos: O que foi ou será empenhado? A resposta envolverá
muitas coisas – memórias, intenções, sonhos, crenças, imaginários, fantasias,
afetos, esquemas corporais [...] E o que foi des-empenhado? Tudo isto! E mais!
A vida como ela é para si; suas dores
e seus prazeres!
Em que estamos empenhados? Com o que estamos compromissados? Somos
capazes? Seremos capazes? Como ficaremos se não pudermos? O que faremos se não
conseguirmos?
De qualquer forma! Um des-empenho satisfatório em 2015.
Mario
Battisti