domingo, 22 de maio de 2016

Competências e 54 anos; escrever e conservá-las


epistámenos. Assim se chama o homem enquanto competente e hábil (competência no sentido de appartenance). A filosofia é epistémetis de uma espécie de competência, theoretiké, que é capaz de theorein, quer dizer, olhar para algo e envolver e fixar com o olhar aquilo que perscruta.  (Heidegger O que é isto Filosofia?  pg. 24, 2006)

De que competências se está a falar quando se define o campo de estudo e atuação do terapeuta ocupacional? Para que tais competências?

Em resposta à primeira pergunta, endereço as seguintes assertivas: as competências do terapeuta ocupacional emergem, originariamente, das competências desnaturadas do cliente, ou melhor, da opacidade própria do sofrimento ocupacional. Essa opacidade, em outras palavras, é a nebulosidade das competências do cliente para desempenhar os seus compromissos ocupacionais; dificuldade que estabelece dúvida. De outro modo, a aparição do ser é cercada de dúvida com relação à sua competência ocupacional na lida com o mundo das coisas e aqui não se está a falar tão somente do entorno, senão do mundo das coisas nele (realidade). O sofrimento tem aparição porque as competências necessárias não se desvelam, não se fazem comportamento diante das solicitudes e das preocupações que as convocam a desempenhar o empenhado; a impossibilidade com o compromisso ocupacional. A dúvida que se instala é: há competências para colocar em curso o compromisso assumido? A ausência de resposta, o silêncio duradouro em face do questionamento é a origem do sofrimento ocupacional.

O autodesenvolvimento próprio do processo de autocuidado, transformação do entorno e do mundo em si (realidade), solicita, para sua ocorrência, deixar de estar envolto (envolvido) nos modos já conhecidos para, então, se envolver em um modo modificado de ser. Ocorre que para que haja desenvolvimento, o pressuposto é um prévio envolvimento com o que já lhe é próprio. No caso do sofrimento ocupacional, a dúvida se assenta, exatamente, na “perda” dessa propriedade, uma vez que essa propriedade foi desnaturada; deixou de ser parte da natureza ocupacional do corpo ou, em outras palavras, ele foi desapropriado dos esquemas corporais: cognitivos, psicomotores, psicoafetivos, psicossociais etc. Este fenômeno decorre de fatores inerentes ao corpo, pela desindexação de fatores ambientais que facilitam tais esquemas, pela indexação de fatores ambientais que impedem o funcionamento pleno de tais esquemas ou  pela conjuntura dessas circunstâncias.

Em síntese, a competência do terapeuta ocupacional é uma projeção da competência desnaturada daquele que lhe endereça o sofrimento ocupacional.

À pergunta, o que perscruta o terapeuta ocupacional? O que ele sonda? Proponho as seguintes assertivas: ele analisa os aspectos que compõem ou compunham o desempenho ótimo da pessoa para o cumprimento de seus compromissos ocupacionais, de suas atividades propositais na situação real de vida. A referida sondagem, em parte, é realizada em ambiente simulado, ambiente clínico, afastado, como não poderia ser diferente, da situação real de vida. Contudo, parte da sondagem se dá pela declaração daquele que está sob seu cuidado. De outro modo, ela é o resultado da narrativa do cliente, o qual desvela o real desempenho que ele obtinha e obtém no curso do cumprimento de seus compromissos ocupacionais. O terapeuta ocupacional analisa e compara esses momentos (instantes).

Ele sonda as competências próprias dos esquemas corporais: psicomotores, neuromusculoesqueléticos,  psicoafetivos, psicossociais, senso-perceptivos, etc necessários, em hipótese, para realização de uma dada atividade ou necessários à participação. Ele sonda como se dá a interação de tais esquemas com o mundo ao entorno (fatores ambientais) e o mundo no ser (sua realidade). O impacto desses na vida ativa e participativa na vida de pessoas e no caso concreto. Há uma comparação do caso hipotético, caso paradigma e o caso concreto (a pessoa sob seu cuidado).

Daí que o cliente busca naquele que estuda, de forma especial e acurada (no terapeuta ocupacional), o excedente cognitivo para fazer retornar ao seu domínio, à sua posse, aquilo que lhe é próprio, mas que restou perdido pelas razões anteriormente expostas: decadência natural da relação do corpo com o ambiente ou por ação preponderante de um desses dois componentes, isto é, quando há uma preponderância do corpo “ofendendo” a relação natural de ambos os componentes ou uma “ofensa” do ambiente à referida relação. Portanto, por certo, há uma quebra do pacto natural entre o ser e o mundo que o cerca e o mundo nele; o ser-no-mundo em desequilíbrio, o corpo ocupacional em desequilíbrio.

Donde se conclui, dentro de uma visão fenomenológica, que a competência originária do terapeuta ocupacional vem antes da construção científica ou legal, ela se assenta, originalmente, no já referido sofrimento ocupacional, na aparição fenomênica da queda da competência do cliente. De outro modo, a competência do terapeuta ocupacional é a projeção da competência desnaturada daquele que lhe endereça o sofrimento ocupacional.



Mario Battisti

Continua